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Sexta-feira, 13 de setembro de 2024
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cantidiosfilho@gmail.com

24/08/2024 - 05h14

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24/08/2024 - 05h14

Pisoteando Estrelas

 

Imperador da Chapada (é assim que o chamo na intimidade).  Foto: Cineas Santos

 Imperador da Chapada (é assim que o chamo na intimidade). Foto: Cineas Santos

Este ano, por razões que ignoro (a Natureza certamente sabe), no mês do aniversário de Teresina, os ipês mal deram o ar de sua graça. Ainda assim, esparsos pontos luminosos cintilavam na aridez da Chapada. Eram os ipês, timidamente, anunciando o nosso arremedo de primavera. Um deles, porém, como que para compensar a sovinice dos demais, brindou-nos com duas floradas num curto espaço de tempo. Trata-se do Imperador da Chapada (é assim que o chamo na intimidade), o mais belo ipê de Teresina. Fincado no jardim de um casarão imponente, no cruzamento das ruas Coelho Rodrigues e 1º de Maio, há mais de 30 anos, cumpre um nobre ritual: na primeira semana de setembro, ilumina, com sua beleza renovada, uma nesga da cidade. Quem o plantou – Carlos Pires Rabelo – já não está entre nós, mas o ipê resiste, belo, nobre e altivo como um deus pagão.

Todos os anos, sem alarde, cumpro também o meu ritual, um ritual de encantamento. Durante o período de floração do Imperador, todos os dias, humildemente, vou reverenciá-lo como um súdito que se sabe indigno de tamanha generosidade. Não existe, para o meu gosto, visão mais bela na cidade. É um monumento vivo, ou melhor, um monumento prenhe de vida. As abelhas e os pássaros sabem do que falo...

Sábado passado, parei mais uma vez para contemplá-lo, fotografá-lo, fruir-lhe a indescritível beleza. Tonto de encantamento, sentei-me no meio-fio e deixei que chovessem sobre mim bênçãos em forma de flores. Na noite anterior, caíra uma chuvinha, acompanhada de uma brisa suave, quase imperceptível, mas suficiente para derrubar parte da florada do Imperador. Metade do quarteirão ficou recoberta de flores amarelas, visão que me remeteu ao filme “Sonhos”, de Akiro Kurosawa. De repente, desponta na entrada da rua uma manada de estudantes. Teriam entre 13 e 17 anos, no máximo. Eram 12, se não errei a contagem. Entre eles, cinco garotas. Indiferentes a tudo, sem perceber o tapete de flores, seguiram em frente, pisoteando as estrelas... Esperei que pelo menos uma das meninas se agachasse, pegasse uma daquelas flores para enfeitar os cabelos. Esperei...

Tamanha indiferença me deixou triste, muito triste. Quando a beleza já não é capaz de sensibilizar os jovens, alguma coisa deve estar errada. E está. Essa moçada é vítima de uma sociedade violenta, neurótica e neurotizante onde só se reverencia o deus-consumo. Se aquele espetáculo, que a Natureza oferecia gratuitamente, estivesse sendo anunciado na TV ou na internet e algum espertalhão resolvesse cobrar ingresso, filas cercariam o quarteirão.
                                
Um dia, sem aviso prévio, o Imperador da Chapada caiu. Até o momento, ainda não se  encontrou outro ipê que lhe herdasse a coroa. Indiferente, a cidade segue o seu curso.

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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais. 

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