Estatura mediana, idade inescrutável, incerta procedência. Fazia ponto em frente à “Pérola”, na Rua Simplício Mendes, e parecia estar ali desde sempre. Dizia-se um “artista de rua”. Ganhava a vida colorizando fotografias em preto e branco. Elegante em sua quase indigência: calça marrom, paletó cinza, camisa enxovalhada, sapatos bicolores, chapéu panamá e um cachimbo que, de tão constante, já lhe entortara a boca. Tinha o lado esquerdo “esquecido” : caminhava manquitolando. Extremamente meticuloso. Trabalhava como se praticasse um ritual. Armava a mesinha desmontável, abria a valise de couro de onde retirava cotonetes, pincéis, algodão, tesoura e uns vidrinhos de penicilina com as tintas. Acendia o cachimbo começava a trabalhar. Quanto aos resultados, todos os colorizados ficavam com jeito de mortos maquiados. Ainda assim, tinha clientela garantida.
Aquela figura cinzenta, barba grisalha, me fascinava. Muitas vezes eu ficava parado, fingindo esperar alguém, só para vê-lo executar o seu delicado trabalho. Depois de colorizar o retrato, parava, aferia o resultado, prendia a foto com um desses pegadores de roupa e pendurava num cordão por alguns minutos. Conferia novamente, fazia alguns retoques e, só depois, embrulhava as fotos com papel de seda. A laúza dos camelôs não o perturbava. Fazia tudo com a mão direita: a esquerda pendia inútil como um peixe morto.
Vai que, numa dessas manhãs que transformam Teresina num abismo de luz, o nosso artista teve a sua paz perturbada. Talvez por necessidade, aceitou encomenda, que fugia à sua especialidade, pintar uma paisagem num pedaço de plástico escuro. A paisagem era aquela bem conhecida: casinha com chaminé, um lago, árvores e uma caminho de terra vermelha. Nada que um artista mediano não pudesse executar. O problema era o suporte: um pedaço de plástico reluzente. Não bastasse isso, o nosso artista trabalhava com tinta à base de água, acetona e anilina. Desastre total. Executou o trabalho, recebeu o pagamento e voltou à rotina das fotografias. Tudo estaria certo não tivesse a tinta se volatizado antes que a cidadã, orgulhosa, pudesse mostrar aos familiares e vizinhos a obra de arte. Como que por capricho, a paisagem simplesmente desaparecera do plástico. Restou um borrão desfigurado.
A dona da encomenda voltou acesa. Era uma mulher negra, pequena, com voz esganiçada. Armou o maior barraco: brandia o pedaço de plástico e, aos berros, chamava o artista de “marreteiro”, “tratante”, “ladravaz”. O público, sempre carente de espetáculo, começou a juntar-se. Em curto espaço de tempo, o cidadão estava cercado por uma multidão de desocupados. Estoicamente, ele ouvia tudo sem nada dizer. Acendeu o cachimbo e permaneceu impassível, olhando um ponto equidistante entre o nunca e o nada. Lá pelas tantas, encarou a multidão e afirmou pausadamente: “O que não vai dar certo não dá certo mesmo”. Deu mais uma cachimbada e concluiu sua peroração: “Aquele dinheiro que a senhora pagou pelo quadro me roubaram”. E mais não disse.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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