O diretor do Ginásio Dom Inocêncio era um padre espanhol, corpulento, enérgico, disciplinador. Segundo as más línguas, teria sido oficial do exército do generalíssimo Francisco Franco. O certo é que tinha grande apreço pelas comemorações cívicas. Havia um calendário cívico-religioso que se cumpria ao pé da letra. 7 de Setembro era, por excelência, a data magna a ser comemorada em grande estilo. Às 7 horas, já estávamos no pátio do vetusto ginásio, à espera das ordens do Fernandão. A comemoração exigia farda de gala: sapatos, meias, cinturão e gravata pretos; calças de tropical azul-marinho, camisa branca e túnica branca com botões dourados. Dir-se-ia um bando de marinheiros numa terra sem água.
No ritmo ditado pelos tambores, descíamos marchando até a Roda do Bitoso, no centro da cidade. Uns dois Km de marcha. Em frente ao antigo quartel da polícia militar, perfilados, esperávamos o pior: o dilúvio de discursos. Os oradores se revezavam num ritmo estonteante enquanto sol de setembro nos cozinhava os miolos. Como não havia água, alguns alunos passavam mal... Para coroar a falação, convidava-se o venerável professor de história, Ariston Dias Lima. Com sua vocação teatral, o velho mestre narrava os acontecimentos como se tivesse tomado parte neles. Inflamava-se,gesticulava, suava...Terminava sua peroração com essa joia preciosa: “Finalmente, quebraram-se os grilhões que nos prendiam a Portugal! O Brasil, soberano e altaneiro, estava pronto a cumprir o seu destino glorioso no concerto das nações livres. Tenho dito!”. Exaustos, mas felizes, aplaudíamos o fim da tortura cívica.
Durante muito tempo, envergonhei-me por me faltar o tão louvado “sentimento patriótico”. Um dia, encontrei esta pérola em Samuel Johnson: “ O patriotismo é o último refúgio de um canalha”. Respirei aliviado. O certo é que, depois do sofrimento cívico no Ginásio Dom Inocêncio, nunca mais entrei numa fila para marchar. O joelho esquerdo avariado livrou-me de servir no Exército. Tornei-me uma espécie de “inválido da pátria”.
Mas a vida tem muitas curvas, mesmo que você acredite estar andando em linha reta. Por oportuno, vale lembrar: a Terra é redonda... O certo é que, há pouco tempo, recebi um convite insólito, para dizer o mínimo. Uma escola de um município do interior do Piauí resolveu prestar-me uma homenagem, justamente no dia 7 de Setembro. Minha missão: desfilar num carro alegórico, fazendo o papel de mim mesmo. De repente, imaginei-me encarapitado no alto de um carro enfeitado com bandeirolas, sob um sol inclemente, balançando os braços desengonçadamente como um daqueles bonecos gigantes do carnaval de Olinda... Agradeci a homenagem, que sei sincera, mas declinei do convite: minha saúde já não me permite receber homenagens de tal porte. Se me convidarem para conversar com os alunos sobre cultura, irei com a maior satisfação. Cobro apenas uma xícara de café forte.
*****
Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.