Textão sim, porque a pessoa merece: há muitos e muitos anos morei no centro da cidade (bem centrão mesmo) e gostava de bater bola na parede do quintal, que dava pra uma casa de pé direto bem alto, onde funcionava a Academia Piauiense de Letras. Meu pai, querendo um pouco de sossego, me dizia que caso a bola caísse pro quintal da Academia, o Herculano Moraes daria fim nela.
Muitos anos depois, eu e ele nos tornaríamos próximos por caminhos profissionais, e, claro, não pude deixar de dizer a ele do quanto ele foi algoz imaginário das minhas bolas dente-de-leite.
De passo elegante, firme e leve, a cabeleira branca, sempre uma boa estória na manga, fosse do passado ou do presente, nos tratávamos, carinhosa, jocosa e respeitosamente por "meu príncipe", um gracejo 3 em 1. Adorava os causos da figura do meu bisavô Dondon, a quem achava , ao lado de outros jornalistas da Teresina de antigamente, injustiçado por não ter sua memória preservada para as gerações futuras.
Talvez por isso criou tantas academias, não para inflar sua vaidade, mas para fomentar o conhecimento e a intelectualidade, valores nem sempre compreendidos, como da vez em que foi chamado de maneira não muito elegante de "inventor de academias". O tiro saiu pela culatra, e virou mais uma das nossas piadas internas ("bom dia, nobre inventor de academias!"). Estava sempre lançando um livro, ou três, ou uma coleção.
Fazia questão de sempre me presentear com algum, pois sabia que era um presente por mim sempre estimado. Uma vez me pediu uma carona e quis saber se poderia levar um amigo também. Embarcou no carro o silencioso amigo, com quem travou um diálogo quase solitário durante o trajeto. Somente ao final da carona me dei conta que a taciturna figura que eu lavava era nada mais nada menos que Assis Brasil, lenda viva da literatura piauiense.
Há alguns anos me comunicou que iria aposentar-se, após tirar do prelo dois livros engavetados. Perguntei se a autobiografia era um deles (onde figurariam suas passagens pelo jornalismo, literatura, cerimoniais e bastidores da política). Jogando a furiosa cabeleira grisalha pra trás em uma gargalhada, negou, e disse ter deixado a encomenda à cargo de sua enteada, Aline Brito.
Nunca usava celular, motivo pelo qual recebi, inúmeras vezes, chamadas urgentes de pessoas à sua procura, me tornando quase uma espécie de sua secretaria eletrônica. Sempre discreto, Herculano Moraes saiu quase à francesa da Cultura piauiense na tarde desta quinta-feira.
A última visão que tenho dele em vida é um vulto passando ao meu lado na loucura do trânsito, pouco menos de uma semana atrás. A mesma pressa, a mesma altivez, nunca pensei que estivesse tratando da saúde. Pela janela do carro, no travamento do sinal, pensei "lá se vai Herculano, atrás de mais um livro".
* Herculano Moraes, mebro da Academia Piauiense de Letras faleceu em Teresina, nessa quinta-feira, 17 de maio de 2018.
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Fernando Castelo Branco é jornalista e baixista, nas redes sociais.
Muitos anos depois, eu e ele nos tornaríamos próximos por caminhos profissionais, e, claro, não pude deixar de dizer a ele do quanto ele foi algoz imaginário das minhas bolas dente-de-leite.
De passo elegante, firme e leve, a cabeleira branca, sempre uma boa estória na manga, fosse do passado ou do presente, nos tratávamos, carinhosa, jocosa e respeitosamente por "meu príncipe", um gracejo 3 em 1. Adorava os causos da figura do meu bisavô Dondon, a quem achava , ao lado de outros jornalistas da Teresina de antigamente, injustiçado por não ter sua memória preservada para as gerações futuras.
Talvez por isso criou tantas academias, não para inflar sua vaidade, mas para fomentar o conhecimento e a intelectualidade, valores nem sempre compreendidos, como da vez em que foi chamado de maneira não muito elegante de "inventor de academias". O tiro saiu pela culatra, e virou mais uma das nossas piadas internas ("bom dia, nobre inventor de academias!"). Estava sempre lançando um livro, ou três, ou uma coleção.
Fazia questão de sempre me presentear com algum, pois sabia que era um presente por mim sempre estimado. Uma vez me pediu uma carona e quis saber se poderia levar um amigo também. Embarcou no carro o silencioso amigo, com quem travou um diálogo quase solitário durante o trajeto. Somente ao final da carona me dei conta que a taciturna figura que eu lavava era nada mais nada menos que Assis Brasil, lenda viva da literatura piauiense.
Há alguns anos me comunicou que iria aposentar-se, após tirar do prelo dois livros engavetados. Perguntei se a autobiografia era um deles (onde figurariam suas passagens pelo jornalismo, literatura, cerimoniais e bastidores da política). Jogando a furiosa cabeleira grisalha pra trás em uma gargalhada, negou, e disse ter deixado a encomenda à cargo de sua enteada, Aline Brito.
Nunca usava celular, motivo pelo qual recebi, inúmeras vezes, chamadas urgentes de pessoas à sua procura, me tornando quase uma espécie de sua secretaria eletrônica. Sempre discreto, Herculano Moraes saiu quase à francesa da Cultura piauiense na tarde desta quinta-feira.
A última visão que tenho dele em vida é um vulto passando ao meu lado na loucura do trânsito, pouco menos de uma semana atrás. A mesma pressa, a mesma altivez, nunca pensei que estivesse tratando da saúde. Pela janela do carro, no travamento do sinal, pensei "lá se vai Herculano, atrás de mais um livro".
* Herculano Moraes, mebro da Academia Piauiense de Letras faleceu em Teresina, nessa quinta-feira, 17 de maio de 2018.
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Fernando Castelo Branco é jornalista e baixista, nas redes sociais.
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