Confesso: pra "descansar" da escrita da tese, comecei a leitura do quarto volume do livro Diários da Presidência, de FHC - menos pela vontade e mais pela ideia de que poderia conhecer um pouco mais da história dessa saída de FHC (e consequente entrada de Lula na presidência).
Não foi por falta de aviso: "ele é elitista" - a gente já sabia. Mas nada me preparou para o que eu li.
Primeiro: o livro é mal escrito, chato. Ainda que se possa dizer: é feito como um diário mesmo, espera-se mais de alguém considerado um intelectual brasileiro, o príncipe entre os presidentes, o que dá palestras em universidades internacionais etc.
Segundo: ele é elitista até a medula. E não se dá conta disso. Ou se percebe, deve achar que é normal. Naturalizou. Se isso já seria um problema pra qualquer pessoa de cargo público num país desigual como o Brasil, o que dizer de alguém que foi presidente por duas vezes, senador da república e ministro.
Ok, vão dizer: todo mundo já sabia que FHC é elitista. Mas "ouvir" algumas coisas da "boca" dele e não de um crítico ao seu estilo, torna tudo mais grave, entende?
Todos os nomes que ele cita em seu convívio são sobrenomes pomposos, donos de bancos, construtoras, grandes empresários. No dia do último debate entre Lula e Serra, ele assistiu a esse debate na companhia dos maiores banqueiros e construtores do país. Juntos fizeram avaliações sobre o que seria o futuro do Brasil e tentaram traçar projetos. Ele volta a se reunir com esses magnatas depois da eleição, tentando pensar saídas para o Brasil. Ou seja: saídas para essas grandes fortunas.
FHC dá entrevista ao Jornal Nacional após a eleição de Lula e, após essa entrevista, saem pra jantar: ele, donos de empreiteiras e da rede Globo, novamente discutindo o Brasil que querem.
No dia eleição em segundo turno entre Lula e Serra, FHC estava em reunião para tomar decisões sobre o Instituto FHC. Poucos dias depois se reuniu com 10 empreiteiras,que doaram dinheiro para o Instituto.
FHC foi procurado por Serra, que temia a prestação de contas da campanha. FHC aconselhou Serra a viajar para os EUA e relaxar.
FHC conta da sua mudança para um outro apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. "Naquele bairro está tudo sempre bem", diz.
FHC diz que não há fome no Brasil. Isso: o homem que deixa a presidência do Brasil, desconhece essa informação. E acha um absurdo Lula anunciar a criação de uma Secretaria de Emergência contra a fome. "Pura Demagogia. Não se precisa de Secretaria contra a fome, é para dar a impressão ao mundo de que temos vários milhões de pessoas morrendo de fome, o que não corresponde à verdade. Demagogia pura" - diz FHC.
Mais: a vaidade e a inveja são dois sentimentos difíceis de esconder. Elas estão lá, nos diários de FHC. Perdi as contas de quantas vezes ele afirma: "me aplaudiram muito" e "fui muito elogiado".
Diz que, fora a Secretaria da Fome, que Lula iria criar sem necessidade alguma, tudo o que Lula tava dizendo que iria fazer, parecia querer copiar seu governo. E conclui: "Mas parecia eu falando. Só que falaria com mais ênfase e talvez com mais graça, sem um documento nas mãos para ler. Não disse nada, nada mesmo, fora essa questão da fome.".
FHC ainda se refere a outra entrevista de Lula, quando este diz que passou fome, para afirmar que achou isso piegas.
E por fim, diz que seu governo fez um esforço "europeizante", o que era importante, num momento de "tentações africanizantes".
Tudo o que ele diz transborda elitismo, desconhecimento das pessoas do país que governava, preconceitos. Mas ele diz sem preocupações. Ele diz sem achar que seja um problema. Ele diz e se lê e se divulga e se comenta como se fosse algo absolutamente normal.
Ô, FHC, já passou pela sua cabeça a questão de RECONHECER SEUS PRIVILÉGIOS - talvez um dos maiores ensinamentos que os movimentos identitários e sociais nos legaram, pela profundidade que pode ter isso.
Leio esse diário de um ex-presidente, fico chocada, mas acho que agora conheço melhor o Brasil a que chegamos em 2019.
Se você tiver estômago, leia.
Se não tiver, pode me agradecer porque poupei seu trabalho.
***********
Samária Andrade é doutoranda e professora da Univesidade Estadual do Piauí - nas redes sociais.
Não foi por falta de aviso: "ele é elitista" - a gente já sabia. Mas nada me preparou para o que eu li.
Primeiro: o livro é mal escrito, chato. Ainda que se possa dizer: é feito como um diário mesmo, espera-se mais de alguém considerado um intelectual brasileiro, o príncipe entre os presidentes, o que dá palestras em universidades internacionais etc.
Segundo: ele é elitista até a medula. E não se dá conta disso. Ou se percebe, deve achar que é normal. Naturalizou. Se isso já seria um problema pra qualquer pessoa de cargo público num país desigual como o Brasil, o que dizer de alguém que foi presidente por duas vezes, senador da república e ministro.
Ok, vão dizer: todo mundo já sabia que FHC é elitista. Mas "ouvir" algumas coisas da "boca" dele e não de um crítico ao seu estilo, torna tudo mais grave, entende?
Todos os nomes que ele cita em seu convívio são sobrenomes pomposos, donos de bancos, construtoras, grandes empresários. No dia do último debate entre Lula e Serra, ele assistiu a esse debate na companhia dos maiores banqueiros e construtores do país. Juntos fizeram avaliações sobre o que seria o futuro do Brasil e tentaram traçar projetos. Ele volta a se reunir com esses magnatas depois da eleição, tentando pensar saídas para o Brasil. Ou seja: saídas para essas grandes fortunas.
FHC dá entrevista ao Jornal Nacional após a eleição de Lula e, após essa entrevista, saem pra jantar: ele, donos de empreiteiras e da rede Globo, novamente discutindo o Brasil que querem.
No dia eleição em segundo turno entre Lula e Serra, FHC estava em reunião para tomar decisões sobre o Instituto FHC. Poucos dias depois se reuniu com 10 empreiteiras,que doaram dinheiro para o Instituto.
FHC foi procurado por Serra, que temia a prestação de contas da campanha. FHC aconselhou Serra a viajar para os EUA e relaxar.
FHC conta da sua mudança para um outro apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. "Naquele bairro está tudo sempre bem", diz.
FHC diz que não há fome no Brasil. Isso: o homem que deixa a presidência do Brasil, desconhece essa informação. E acha um absurdo Lula anunciar a criação de uma Secretaria de Emergência contra a fome. "Pura Demagogia. Não se precisa de Secretaria contra a fome, é para dar a impressão ao mundo de que temos vários milhões de pessoas morrendo de fome, o que não corresponde à verdade. Demagogia pura" - diz FHC.
Mais: a vaidade e a inveja são dois sentimentos difíceis de esconder. Elas estão lá, nos diários de FHC. Perdi as contas de quantas vezes ele afirma: "me aplaudiram muito" e "fui muito elogiado".
Diz que, fora a Secretaria da Fome, que Lula iria criar sem necessidade alguma, tudo o que Lula tava dizendo que iria fazer, parecia querer copiar seu governo. E conclui: "Mas parecia eu falando. Só que falaria com mais ênfase e talvez com mais graça, sem um documento nas mãos para ler. Não disse nada, nada mesmo, fora essa questão da fome.".
FHC ainda se refere a outra entrevista de Lula, quando este diz que passou fome, para afirmar que achou isso piegas.
E por fim, diz que seu governo fez um esforço "europeizante", o que era importante, num momento de "tentações africanizantes".
Tudo o que ele diz transborda elitismo, desconhecimento das pessoas do país que governava, preconceitos. Mas ele diz sem preocupações. Ele diz sem achar que seja um problema. Ele diz e se lê e se divulga e se comenta como se fosse algo absolutamente normal.
Ô, FHC, já passou pela sua cabeça a questão de RECONHECER SEUS PRIVILÉGIOS - talvez um dos maiores ensinamentos que os movimentos identitários e sociais nos legaram, pela profundidade que pode ter isso.
Leio esse diário de um ex-presidente, fico chocada, mas acho que agora conheço melhor o Brasil a que chegamos em 2019.
Se você tiver estômago, leia.
Se não tiver, pode me agradecer porque poupei seu trabalho.
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Samária Andrade é doutoranda e professora da Univesidade Estadual do Piauí - nas redes sociais.
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