Dia desses, fui ao Centro Administrativo de Teresina e deparei-me com um objeto insólito, para dizer o mínimo. Entre um monte de detritos, um orelhão abandonado. O filósofo dos botequins diria: “ Trata-se de um fóssil da pré-história contemporânea”. Se é que essa coisa existe. O que importa: parei, fotografei aquele “inutencílio” e retirei-me.
Como meu juízo é uma borboleta desgovernada, num átimo, vi-me transportado para o município de Guaribas, no coração do semiárido piauiense. À época. 2003, Guaribas fora agraciada com o rótulo de “município mais pobre do Basil”. Decidiu-se então que ali se lançaria o Projeto Fome Zero, do governo federal. Se o trem funcionasse naquele fim de mundo, funcionaria em qualquer lugar.
Por amor à verdade, nada do que vi ali me causou surpresa. Guaribas não dispunha de água potável (cada família tinha direito a 20 litros de água por dia), não havia um palmo de calçamento e a iluminação mais parecia candeeiros pendurados em postes. O acesso até a sede do município era indescritível: buracos, poeira, solidão...
Como já afirmei em outro lugar, onde nasci não havia água, luz elétrica, escola, professores, livros... Comparada a Campo Formoso, Guaribas era quase uma metrópole. Havia dois bares, num deles, um aparelho de TV que chuviscava granizo e um orelhão. Para ter acesso à “novidade”, tive de esperar uma eternidade. Como a geringonça só funcionava à noite, sentei-me num banco de madeira e esperei.
Os usuários ligavam para parentes e aderentes em São Paulo e Brasília. Falavam de tudo, pediam dinheiro, queixavam-se da falta de chuva, de doenças, etc
Por volta da meia-noite, falei com dona Áurea: “Cheguei em paz, está tudo bem” e desliguei. Os que ainda aguardavam a sua vez devem ter agradecido a minha concisão.
Meses depois voltei ao município levando o Projeto a Cara Alegre do Piauí. Cursos de português, história e geografia para professores e oficinas (flauta doce, violão, pintura, canto e dança) para os jovens. Como no grupo havia uma fotógrafa e a paisagem árida do lugar podia render boas fotos, resolvemos oferecer também um curso de fotografia.
No curso de geografia, havia professores e alunos. Quando a professora Catarina Santos mostrou o mapa do Piauí aos alunos, aconteceu o inimaginável: ao descobrirem que Guaribas figurava no mapa, a molecada vibrou como se comemorasse um gol. Surpresa maior: 43 alunos inscreveram-se no curso de fotografia. Apenas um dos alunos, um rapaz de 20 anos, tinha uma maquininha “xereta”, daquelas distribuídas de graça pela Kodak para vender filmes. Foi aí que me dei conta de que todas as meninas estavam lindamente “produzidas”: roupas de festa, maquilagem caprichada, cabelo cuidados...As alunas acreditavam que o curso seria de modelo fotográfico.
Bateu uma tristeza maior que a miséria de Guaribas. Meninas que nem sabiam da existência do município no mapa do Piauí sonhavam em tornar-se modelos, estrelas, celebridades... Como em matéria de “comunicação moderna” só havia na cidade um orelhão e uma TV imprestável, onde aquela garotas pobres descobriram o reino encantado da fantasia. Ainda hoje não descobri.
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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