Hoje é dia de ouvir, ler e celebrar um dos maiores poetas da canção brasileira. Chico Buarque de Holanda completa 80 anos, e é incrível a força incontornável de sua personalidade cultural no Brasil. Chico é sofisticado criador, cultor da palavra. Seu ponto máximo de realização poética está em suas canções, com incrível variedade de criação e pulso inventivo.
Mas, quero falar aqui de sua outra eficácia com a palavra, a dramaturgia e a prosa romanesca, com obras instigantes e já plenamente assentadas ao sistema literário brasileiro. Vejam só: em 1967 Chico Buarque escreve a peça “Roda viva”, saga sobre um artista popular triturado pelos mecanismos do showbiz, o encenador Zé Celso Martinez Correia pegou o texto, montou e fez uma revolução estético-política em 1968, poucos meses antes do AI-5. “Calabar”, de 1973, foi escrita a quatro mãos, com o cineasta Ruy Guerra. Trata-se da encenação do episódio histórico do Brasil colônia, em que o negro pernambucano Calabar, depois de combater os invasores holandeses, desertou, foi considerado traidor, condenado e morto pelo domínio português. O aproveitamento do acontecimento do século XVII serviu como metáfora para denunciar o cerceamento do indivíduo no período da ditatura Militar pós-64. O texto foi censurado pelos milicos de antanho.
No ano seguinte lança a novela “Fazenda Modelo”, uma alegoria da sociedade brasileira da época e daqueles tormentos todos. Em forma de parábola, as vozes dos animais da fazenda ditam configurações de poder e de dominação social. Ao lermos esta obra não há como não lembrar “A Revolução dos bichos”, de 1945, do escritor inglês George Orwell. E é isso mesmo, uma linha que se afina com a tradição literária das fábulas morais, que remontam ao grego Esopo, e das vertentes literárias da sátira política.
Em 1975, nosso autor volta à dramaturgia, com o emblemático texto “Gota D’água”. Escrita em parceria com Paulo Pontes, Chico alcança sua maturidade como dramaturgo, ao transpor para a realidade brasileira a tragédia “Medeia”, de Eurípedes. Leitor de Bertold Brecht, Chico escreve, em seguida, a peça “Ópera do malandro” (1978), baseada na “Ópera de três vinténs”, de Brecht e Kurt Weill, de 1928 e que, por sua vez, segue a “Ópera dos Mendigos”, de John Gay, de 1728. A transcriação mantém o painel de desagregação social por tipos que estão à margem dos sabores do capital, do mundo burguês. No Brasil de Getúlio Vargas, a figura do malandro em contraponto ao trabalhador, a contravenção como paradoxo resultante de tramas financeiras que regulam poderes e mandos, permitindo o casamento de pequenos burgueses ladeado com malfeitores e prostitutas, como a simbólica Geni.
Em meio a essa efervescência dramatúrgica, como uma espécie de pausa no combate, ainda em 1970, escreve “Chapeuzinho Amarelo” única obra literária infantil de Chico, esperta história sobre paradigmas do medo de uma criança e sua busca pela coragem, relançada em 1979 com ilustrações do genial Ziraldo.
A partir dos anos de 1990 Chico Buarque investe mais concentradamente, e com regularidade, ainda que espaçada, na produção de romances. O primeiro deles é “Estorvo”, lançado em 1991. A surpreendente narrativa traz um personagem angustiado, que narra um percurso que funde sonho e realidade em ritmo alucinante, uma metáfora da condição do homem contemporâneo. O romance tem um investimento no plano da expressão que mostra a capacidade de mobilidade criativa de Chico, com recursos de linguagem de quem tem algum domínio de algo muito importante em literatura, ainda que não tão óbvio para muitos: saber escrever. Não gratuitamente, com esta obra, Chico é agraciado com o prêmio Jabuti de melhor romance do ano.
“Benjamim” é o título do segundo romance de Chico, escrito em 1995. apresenta o fluxo de consciência do protagonista Benjamim Zambraia. no brevíssimo intervalo de tempo entre ver as armas apontadas para si e ouvir o estrondo dos disparos que o irão mata-lo instantaneamente, ele revive num relâmpago os sucessos de sua vida, sobretudo aqueles que de um ou outro modo acabaram por conduzi-lo ao lugar e momento de sua execução. tanto em “Estorvo” quanto em “Benjamim”, Chico consegue alcançar ótimas estratégias narrativas, em curiosa originalidade.
Em 2003, nos apresenta o romance “Budapeste”, a história de um escritor dividido entre duas cidades, duas mulheres, dois livros, duas línguas. Na verdade, um falso escritor, ou mais precisamente, um escritor anônimo, um gost writer. O protagonista de Budapeste, José Costa, encarna este mágico das letras, com escritório montado e agente para encaminhar encomendas. Ainda que apresente humor e cinismo em tal tarefa, a jocosidade nem sempre o isenta dos tormentos da criação, é como se a dimensão poética, enquanto dado da criação literária, reivindicasse um lugar de privilégio. A narrativa também aponta para o tema da condição de duplo, da alteridade, da projeção de um outro, do espelhamento, muito presente na tradição literária. “Budapeste”, apesar de todo o anedotário, traz fina discussão sobre o papel do escritor, da necessidade ou não da literatura, e do que esperar do campo da ficcionalidade e seus mecanismos de difusão.
O quarto romance de nosso prosador é “Leite Derramado”, publicado em 2009. Um romance de saga familiar, as memórias de um velho aristocrata decadente em leito terminal, que desfila seu passado num monólogo justaposto de acontecimentos, calcados em valores de uma elite que foi se deteriorando. O fundo referencial é a história do Brasil em seus últimos dois séculos, conspurcada por intolerâncias das elites, racismo, corrupção, machismo, improdutividade, conflitos de classes. A condição de doente e a seletividade da memória do protagonista faz com que os relatos pareçam delírios, mas é que a realidade tratada é mesmo carregada de absurdos. Perversão psíquica e perversão histórico-social se confundem, é o sintoma de um país que tem dificuldade de organizar-se como civilização coerente, e que parece não ter jeito, pois o leite que alimenta ou que deveria alimentar está sempre derramando. Os dois romances “Budapeste” e “Leite Derramado” também foram agraciados com o prestigiado Prêmio Jabuti de literatura.
Em “O irmão alemão”, lançado em 2014, Chico recria sua própria aventura familiar. Trata-se da história real de um filho que o historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico, teve na Alemanha na década de 1930, quando ainda solteiro viveu uma aventura amorosa e acabou voltando ao Brasil sem tê-lo conhecido. O argumento da narrativa permite a fusão de ficção e realidade, é a escrita de si.
A crise do escritor aparece novamente em “Essa Gente”, romance de 2019. Uma tragicomédia emblemática, como resposta irônica à polarização política que vivemos no Brasil com a ascensão de Bolsonaro.
Chico estreia como contista em 2021, com “Anos de chumbo e outros contos”, comprovando tratar-se de escritor com maturidade, com domínio efetivo de criação verbal. Os contos têm fôlego narrativo, bom alcance imaginativo de tramas e personagens. Curiosamente alguns contos me fizeram lembrar Rubem Fonseca, poderíamos arriscar alguma filiação estilística ou mesmo mera congruência geracional, o certo é que Chico traz aquela atmosfera de episódios circunstanciais, prosaicos e com estranhamento figurativo.
Chico Buarque sabe escrever, é o que podemos dizer, é inexaurível e prolífico. Soube que viajou à Paris fugindo das efemérides octogenárias. Não importa, a obra está aí, a canção, o teatro, o romance, o homem e a voraz imaginação. Parabéns, Chico, pelos seus fecundos 80 anos, e muito obrigado.
(texto reduzido, e adaptado para hoje, de conferência que fiz na Academia Piauiense de Letras, em 2019)
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Feliciano Bezerra, professor doutor da UESPI - nas redes sociais.
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