Sou de um tempo em que a expressão vida privada tinha um caráter quase sagrado. Quando usada, significava: “além daqui, nada”. Em mais de uma oportunidade, vi pessoas públicas encerrarem entrevistas com a chave de aço: “Minha vida privada só interessa a mim”. Com seu radicalismo lírico, o poeta Quintana ia um pouco além: “A minha vida privada não interessa nem a mim mesmo”. Bons tempos aqueles em que as fronteiras entre o público e o privado eram nítidas e, até certo ponto, respeitadas.
Os tempos mudaram e o mundo contemporâneo tornou-se apenas palco de um imenso reality show onde cada um representa o papel que julga mais adequado a seu perfil. O olho do Grande Irmão (o Big Brother) nos acompanha onde quer que estejamos. Ao contrário do que imaginava George Orwel, no romance 1984, não foi o Estado que se armou das tecnologias mais sofisticadas para nos vigiar 24 horas por dia. Nós é que, não mais cabendo em nós mesmos, extrapolamos todos os limites, inclusive os da decência. Não queremos apenas ser vistos; queremos ser tocados, auscultados, revirados pelo avesso e, por fim, deglutidos. A mídia sensacionalista se encarrega de nos oferecer em bandeja de prata, em gamela de madeira ou em alguidar de barro para o festim dos abutres. O espetáculo não pode parar.
Quem não se lembra daquela atriz que compareceu a uma solenidade no Congresso Nacional sem calcinha? Ao ser flagrada por um fotógrafo, fez beicinho de zangada. A outra, aquela da boca de Coringa, foi transar com o parceiro do dia numa praia qualquer, em plena tarde de sol, e clicada por um paparazzi, ameaçou processá-lo, alegando justamente “invasão de privacidade”. Phode?
Outrora, ia-se a um estádio de futebol, a um teatro, a um cinema, para assistir a espetáculos apresentados por quem tinha o dever de fazê-lo; hoje, vamos para nos exibir, para que a telinha mágica nos mostre, mesmo que estejamos fazendo papel de idiotas...
No final do século passado, o artista pop Andy Wharol lançou uma maldição sobre a humanidade ao afirmar que, no futuro, todo mundo teria direito a 15 minutos de fama. Não explicou, contudo, o preço a ser pago por glória tão efêmera. Ele e o diabo sabiam.
Decididamente, envelheci. No meu tempo, quando se levava “um fora” de alguém, enchia-se o talo de Mangueira ou Bacardi, buscava um ombro amigo pra chorar e, depois de um sono reparador, já se estava pronto para outra. Hoje, o cidadão (ou cidadã) aluga caríssimas placas de outdoor e estampa: EU NÃO TE AMO. Estranha forma de mentir: quem não ama não desperdiça dinheiro com esse tipo de coisa. Simplesmente esquece. O tempora! O mores!
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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