Contrafeito, concordei em acompanhar dona Áurea ao “Mercado do Peixe, ali nas proximidades do CEUT. Não me agrada a imagem de peixes mortos, e o cheiro me provoca náuseas. A bem da verdade, prefiro peixes nadando, livres e longe de mim. Com enorme habilidade e facas afiadas, os vendedores transformam enormes pescadas amarelas em postas prontas para a frigideira.
De repente, percebo ao meu lado, um garotinho de uns quatro anos de idade, acompanhando a avó. A senhora explicava ao vendedor como queria o peixe que pretendia comprar. Como em qualquer mercado, as pessoas falavam, riam, brincavam. Apenas o garotinho e eu permanecíamos mudos, alheios àquela labuta frenética.
Indiferente às carcaças dos peixes com olhos vitrificados, o garoto olhava, com encantamento, uns peixinhos desenhados numa das paredes do mercado. O desenho nada tinha de extraordinário, mas o pintor conseguira a rara proeza de dar a ilusão de movimento aos peixes pintados. Mais uma vez, só o garotinho e eu éramos estranhos àquele mundo prático, onde tudo se resume a compra e vende. Com o dedo indicador, apontava os peixinhos na parede suja. Ele me olhou e sorriu. De pronto, estabeleceu-se entre nós aquele tipo de cumplicidade que só a vida e a arte podem propiciar.
Posso estar enganado, mas, naquele espaço onde tudo exalava o cheiro nauseabundo da morte, só nós dois respirávamos o perfume inconfundível da vida, coisas da arte...
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Cineas Santos é professor, escritor, poeta e produtor cultural - nas redes sociais.
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